“Lei Flávio”: a urgência de um homem em querer reescrever o tempo
Manaus – O Amazonas se vê diante de mais uma crise institucional que mistura casuísmo, conveniência política e descaso com a legalidade. O Projeto de Lei enviado pelo governador Wilson Lima à Assembleia Legislativa (Aleam), em regime de urgência, para alterar a Lei Delegada nº 123/2019, é um exemplo cristalino de como a política local insiste em transformar o Estado em laboratório de manobras jurídicas sob medida.
A proposta prevê que os cargos de Chefe da Casa Civil e de Chefe da Consultoria Técnico-Legislativa sejam privativos de bacharéis em Direito, com inscrição ativa na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Até aí, nada de anormal: é plausível que funções dessa natureza exijam formação jurídica. O problema surge quando se observa a retroatividade da lei a 2019. Essa cláusula, longe de ser um detalhe técnico, é o coração da controvérsia: ela garante que o atual chefe da Casa Civil, Flávio Antony, passe a contabilizar tempo de exercício jurídico mesmo em um período em que, pelas regras vigentes, isso não era permitido.
A barreira da lei federal
A incompatibilidade entre determinados cargos públicos e a advocacia não é matéria estadual. O Estatuto da Advocacia (Lei Federal nº 8.906/1994) é claro ao estabelecer, em seu artigo 28, que ocupantes de cargos como chefes de órgãos da administração direta estão proibidos de exercer a advocacia. Ou seja: não cabe a uma lei estadual reinterpretar ou flexibilizar essa vedação, sob pena de invadir competência da União e criar uma distorção jurídica.
É justamente por essa razão que a manobra soa casuística: o Estado tenta reescrever, com efeito retroativo, a natureza de um cargo para habilitar um aliado a disputar a vaga de desembargador no Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM). Em outras palavras, Antony, que hoje não reúne os requisitos de elegibilidade, seria “regularizado” por um passe de mágica legislativo.
O risco institucional
O maior problema da chamada “Lei Flávio” não está apenas na possibilidade de beneficiar uma pessoa, mas no precedente que cria. Se a Aleam aceitar que leis sejam alteradas com efeito retroativo para favorecer indivíduos, abre-se caminho para que qualquer governo utilize o parlamento como costureiro de interesses particulares. Trata-se de um grave ataque ao princípio da moralidade administrativa (artigo 37 da Constituição Federal), que deve nortear a atuação da administração pública.
Além disso, a pressa em aprovar a medida em regime de urgência reforça a percepção de que não há interesse em debater amplamente a questão ou ouvir a sociedade civil e entidades jurídicas, como a própria OAB. Ao contrário, tudo indica que se busca garantir, o quanto antes, a elegibilidade de Antony no processo de escolha do novo desembargador.
A omissão que fala alto
Wilson Lima empurra o Legislativo estadual para o centro da crise. A Aleam, que deveria exercer o papel de contrapeso democrático, corre o risco de mais uma vez se render ao papel de chanceler de conveniências. Não é apenas a governabilidade que está em jogo, mas a própria credibilidade do sistema de justiça. Se o tribunal mais alto do Amazonas receber um desembargador cuja elegibilidade foi construída artificialmente, sua autoridade ficará sob permanente suspeita.
O Amazonas precisa escolher entre fortalecer suas instituições ou consolidar o estigma de que aqui as leis podem ser reescritas a qualquer momento para atender interesses particulares.
A urgência é de um homem. Mas a omissão, esta sim, é de um Estado inteiro.